Bem,
é o que sou. Não a propriamente dita, mas em linguagem de
radioamador. Pois coruja é o radioamador ouvinte, o que não tem
transmissor e liga o receptor em casa, para ficar ouvindo as
conversas dos outros. Divertimento barato, aliás. Não precisa sequer
ter-se um receptor de alta categoria: basta um pequeno transistor
desses japoneses, de contrabando, acrescentado de uma antena de nove
metros de fio de aço de pescador. O importante, além disso, é que o
transistor tenha faixa de onda de 40 metros, que é por onde se
manifestam os radioamadores da rede local. O mais é constância e
paciência.
E penetra-se num mundo de que não suspeita o simples cidadão,
acostumado a escutar apenas as emissões comerciais de TV e
"broadcasting"; pululando a nosso redor, insuspeita, mas permanente
e ativa, funciona em volta do mundo todo uma imensa rede de estações
de rádio, manipuladas por radioamadores que estabelecem pela Terra
inteira uma cadeia de comunicações, muito mais eficiente que os
serviços públicos, oficiais ou particulares. A boa vontade é o seu
lema, a solidariedade humana a sua obrigação. Quem viu aquele filme
francês "Si tous les gars du monde", pode fazer uma idéia do
fenômeno . E não se trata de conversa de fita de cinema, não; é
assim mesmo daquele jeito que eles se comportam, da Noruega ao
Congo, de Ver-o-Pêso à Vigário Geral.
Um radioamador é assim uma espécie de cruza entre escoteiro e
"santo" de sessão espírita; do escoteiro tem a mania de bem servir,
de não deixar passar um dia sem realizar um ato de bondade, muitos
atos de bondade. Do espírito tem a faculdade de baixar no terreiro
da gente a uma simples evocação, e ainda por cima servir de "cavalo"
para qualquer mensagem de importância grande ou pequena, que você
queira transmitir ou receber. Pois para que a mensagem seja
transmitida, não precisa sequer que o interessado escute o apelo de
quem chamou: há sempre um colega serviçal que escuta, toma nota e
passa adiante, feito atleta com o fogo simbólico.
Os radioamadores que se encontram diariamente a uma hora certa, em
grupo, formam o que se chama na gíria deles uma "rodada" . Pode ser
das cinco às sete da manhã, de uma às três da tarde, de dez à
meia-noite, a rodada não deixa de funcionar, nunca. É só procurá-la
na freqüência habitual e lá estarão eles, com os companheiros do
éter, a "assinar o ponto", a bater papo, a comentar as marcas, as
excelências e os defeitos técnicos das respectivas transmissões,
enchendo lingüiça até que apareça o que eles consideram "serviço
sério": recados de urgência, mensagens, comunicados de falecimento,
de doença, de nascimento, de viagens, de mudanças; promoção de
encontros de famílias ou amigos separados; um de Pará de Minas outro
de Barra do Corda, trocando comunicados afetuosos ou urgentes, que
"Mamãe foi operada. e esta passando bem", que "a festa das bodas de
ouro é terça-feira, sem falta, veja se vem mesmo!" E o dono da
estação de rádio é o médio. Num país onde os telégrafos tão pouco
funcionam o os correios ainda menos, calcule-se o valor dessa
comunicação. O que uma troca de telegramas pediria, no mínimo,
alguns dias - e isso em lugar onde haja telégrafo - o radioamador
resolve num quarto de hora.
Creio que a rodada mais famosa do Nordeste é o chamado o "Cafezinho
da Manhã", que funciona diariamente das cinco e meia às sete e
engloba uma rede de radio- amadores que vai da Bahia ao Maranhão,
com incursões por Minas, Pará ou até onde for a onda de 40 metros.
Seu criador e animador é o "Caboclo Xavante" das tabas ao "Queixeramobim",
que em geral dirige a rodada, dá a palavra a quem de direito, mantém
a disciplina da reunião, faz, como eles dizem, "a roda rodar".
É homem extremamente cortês, que pode estar apressadíssimo para "dar
o pirulito", mas não dispensa os cumprimentos à Labre, à escuta
oficial, aos colegas, de um em um, incluindo os "familiares", sem
esquecer a "rede regional de corujas", da qual faço parte .Mas,
sendo assim disciplinador e comandante da rodada, responsável peIo
seu tom permanente de cortesia e boa camaradagem , deixa de ser o
seu tanto galhofeiro, e está sempre pronto a zombar das conhecidas
franqueza ou estrepolias de uns e outros, da submissão dos "barrigas
brancas ", das indiscrições de algum "cavalo de cão", e insinuar
maliciosamente às esposas na "coruja" as possíveis peraltagem dos
maridos em viagem ...
Nunca o vi em carne e ossos, mas é pessoa que trago no coração;
conheço-lhe a voz entre dezenas, é realmente espírito familiar e
benéfico, desses que, nos terreiros, são chamados de "guias ". O
outro comandante do cafezinho o é mesmo mandante do seu direito,
alta patente Militar e importante função oficial; mas para nós, é,
simplesmente, "o Chaguinha ".
Esse conheço de longe, é um velho amigo dos tempos em que a gente
pensava que podia consertar o mundo com discursos e boletins, um dos
mais eficientes e prestativos da rodada . Perde horas do seu tempo
precioso importante para um recado, tranqüilizar uma mãe aflita,
conseguir um avião que traga um enfermo de algum lugarejo distante,
obter a vacina. Dantes era mestre em broncas, especialmente contra
os mal educados que invadem a freqüência, abafando a voz dos colegas
e atrapalhando as rodadas: agora, não sei o que he deu, está muito
manso. Os anos de cidade e as funções oficiais não lhe alteraram a
fala típica de sertanejo e a sua sertaneja paixão por saber notícias
de chuva. Ah, se soldado pode ser flor, está, ali, uma.
Outros membros do cafezinho são da mais variada procedência, padre e
juiz, dona-de-casa, general, moço rico, pequeno funcionário,
comerciante, fazendeiro, até bispo! Tem de tudo ali, reunidos todos
numa só fraternidade, tratando-se por você, ninguém querendo ser
melhor do que os demais. Com o truque nemonico, usam uma espécie de
pseudônimo tirado das iniciais dos seus prefixos: é o "velho
fazendeiro", "cabloco serrano "(não falei que eles parecem gente de
terreiro? Até essa mania de se chamarem "caboclos". , ). Um mais
lírico, diz-se "Viva o nosso lar ".
Outro se chama "xadrez-lamparina". E tem o Zé Calado", e um meio
maldizente a quem os colegas apelidam de "língua danada" . Usa, além
disso, uma gíria particular, em que expressões técnicas e jargão
familiar se misturam. Tratam-se entre si por macanudos. Um recado é
torpedo; automóvel é pé de borracha, mulher é cristal; dar sinal no
meio da conversa dos outros é dar uma bicorada; falar ao microfone é
modular, e ter estação forte que abafa todo o mundo é ser tubarão
etc. etc.
Mas parece que, em conversa de radioamador, é proibido falar em
negócios, em política e em dinheiro, regra a que eles obedecem com
fidelidade. Exceção feita em casos e que aludir a dinheiro é
indispensável - preço de material de rádio, de premente necessidade
de alguém distante que lembra a mesada ao pai ou o numerário para
uma emergência; eles, então, usam metáforas mais ou menos
transparentes, como "quilociclagem", "combustível", "manteiga".
E assim servem e alegrar o mundo, "fazendo a roda rodar", benza-os
Deus.
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